Duo
Tenho um mestre que não conheço
e que me guia sem saber.
Não sabe meu endereço,
não sei seu nome: pra quê?
Só sei que me guia, e bem
ou mal
me deixo reconduzir
aos mesmos vãos do real
em que me perco sem ir.
E ele, sem me dizer,
me diz que tudo está certo;
ao que eu, sem responder,
respondo: fique por perto,
mestre,
que
estou perdido.
E ele, sem existir, me diz:
sim, meu filho, sim.
E tudo perde o sentido.
Composição
No quarto, nuas, quatro damas
falsas
pisam sobre as próprias máscaras
e depois se amam, como quatro
vacas
no cio.
Diálogo
A Antonio Gabriel
Um deus mirou meu umbigo
E disse: nasceste só.
Não faças isto comigo,
Eu disse: me tenhas dó.
Nasceste só e sem tino,
continuou o ingrato;
não tens escolha: o destino
pintou-te assim o retrato;
e mais: com régua e compasso
ele mediu teu caminho,
traçou teu último passo
naquele trigal, sozinho.
Mas meu retrato, ó bendito,
igual a todos se mostra,
em nada difere, ao visto,
do da estrela ou da ostra.
O que renego em teu gesto
é seres tão duro assim,
eterno que és: protesto,
pois escarneces de mim!
E o deus, fitando meu rosto,
cheio de dor e desgosto,
pronunciou, ao final:
te enganas, não é bem isto:
em teu destino me avisto
porque também sou mortal.
E foi-se embora o maldito
– versão amarga do mito –
e a vida ficou real.
Périplo
E se o ar é de luz
e a chuva é de prata
deixo a minha cruz
e me vou à praça
onde tudo passa
como se num sonho
e onde me ponho
a sonhar e rir
de mim e de tudo.
E se não me iludo
devo então partir:
nada me seduz.
Pois se a chuva passa
e a noite me embaça
volto a minha cruz.
Vivência
Penso no pó – e floresço.
Retiro ouro da dúvida.
A culpa me apura a voz.
Cantiga
Qualquer dúvida é ingrata:
eu quero a flor, a florzinha
inexpressiva e cordata.
(Meu ar de moço maldito,
não seria só farsa?
E meus rompantes e gritos,
sonoras bravatas?)
Sim, eu quero a florzinha
(tão expressiva!)
da mata.
Roberval Pereyr
Antônio Cardoso – BA (1953)