sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Roberval Pereyr




Duo


Tenho um mestre que não conheço
e que me guia sem saber.
Não sabe meu endereço,
não sei seu nome: pra quê?

Só sei que me guia, e bem
ou mal
              me deixo reconduzir
aos mesmos vãos do real
em que me perco sem ir.

E ele, sem me dizer,
me diz que tudo está certo;
ao que eu, sem responder,
respondo: fique por perto,
mestre,
                        que estou perdido.
E ele, sem existir, me diz:
sim, meu filho, sim.
E tudo perde o sentido.



Composição


No quarto, nuas, quatro damas
falsas
pisam sobre as próprias máscaras
e depois se amam, como quatro
vacas
                                  no cio.



Diálogo
A Antonio Gabriel


Um deus mirou meu umbigo
E disse: nasceste só.

Não faças isto comigo,
Eu disse: me tenhas dó.

Nasceste só e sem tino,
continuou o ingrato;

não tens escolha: o destino
pintou-te assim o retrato;

e mais: com régua e compasso
ele mediu teu caminho,

traçou teu último passo
naquele trigal, sozinho.

Mas meu retrato, ó bendito,
igual a todos se mostra,

em nada difere, ao visto,
do da estrela ou da ostra.

O que renego em teu gesto
é seres tão duro assim,

eterno que és: protesto,
pois escarneces de mim!

E o deus, fitando meu rosto,
cheio de dor e desgosto,
pronunciou, ao final:

te enganas, não é bem isto:
em teu destino me avisto
porque também sou mortal.

E foi-se embora o maldito
– versão amarga do mito –
e a vida ficou real.



Périplo


E se o ar é de luz
e a chuva é de prata

deixo a minha cruz
e me vou à praça

onde tudo passa
como se num sonho

e onde me ponho
a sonhar e rir

de mim e de tudo.
E se não me iludo

devo então partir:
nada me seduz.

Pois se a chuva passa
e a noite me embaça

volto a minha cruz.



Vivência


Penso no pó – e floresço.
Retiro ouro da dúvida.

A culpa me apura a voz.



Cantiga


Qualquer dúvida é ingrata:

eu quero a flor, a florzinha
inexpressiva e cordata.

(Meu ar de moço maldito,
não seria só farsa?

E meus rompantes e gritos,
sonoras bravatas?)

Sim, eu quero a florzinha
(tão expressiva!)
                                        da mata.


Roberval Pereyr
Antônio Cardoso – BA (1953)

domingo, 24 de junho de 2012

Rosana Banharoli


Foto/Divulgação: Mário Barbosa


Comunhão


A constelação
soluça luz no universo
e reflete no espelho
do tempo
meu mundo interior



Meu mundo Sísifo


O risco de escavar o tempo
É o de sentir o vento tirar as máscaras
E só restar o incômodo de viver nu
E só



Ninho
Para Claudio Willer


Nas barbas do frio,
percorri a noite.

Vi crianças soltas
no tempo, em estrados
de concreto aparente.

Ouvi gritos histéricos
tambores, sussurros
e devaneios.

Insólita e só,
dancei Mozart
e declamei Hilda Hilst.

Desci às entranhas
e senti vida em galhos secos
e folhas soltas.
É inverno!



(or) Ação


Vertigens dogmáticas
Me levam ao chão
Onde lavo meus pecados
Em genuflexão



Pesadelo


Naquela noite de partida
Chorei
Gozo de despedida
Choro de futuro em preto e branco
Resultado de pacto de sangue
Feito branco no preto.
Tantos anos,
E, ainda, não consigo ver as cores
Tantos anos,
E, ainda, não consigo ver além das sombras
Só vejo as faces do medo
Só vejo as fases do medo
E(sobre)vivo usando disfarces
Despedindo-me do passado.


Rosana Banharoli
Santo André – SP (1960)


sábado, 19 de maio de 2012

Alberto Bresciani





Sorte


Tardio ainda assim
eu me invento

Vozes chegam
de outro tempo

e devolvem
meu silêncio

Nele calo o medo
e todo o corte.



Marghe(rita)


Não valem os dias
além dos corações
que neles batem
São caminhos

Essa única vista
me verte o sim
Você fala por ela
e repete as imagens

A porta que abre
verdeja
e floresce
para dentro do corpo

história maior
do que antigas lembranças

Do teu nome,
margaridas nascem sobre a lava.



Hora desmarcada


I

Quando chegou
estava de saída

já não era cedo
para querer

era tarde
para o desejo


II

As legendas
quase claras

as leituras
turvas, trocadas


III

Arremesso
de som


arremedo
de ar


IV

Desde
antes

no topo
da queda

desencanto
e medo.



Miragem


Somos ficção
Simulamos o invisível
e a imagem

no reflexo
do espelho – ali nada há
como nada somos

Onde encontrar
a verdade
ou a real essência

desses fantoches
de nós mesmos
se os mistérios

não estão em lugar
mas no que mais fundo
escondemos?


Alberto Bresciani
Rio de Janeiro – RJ (1961)

quarta-feira, 28 de março de 2012

Marcelo José Santos




Pedras


A poeira que folheia as sombras ao vento 
hoje fere meus olhos enquanto sigo 
por esse caminho em que ninguém caminha comigo. 
Cerro-os então, ao descobrir que é agora um momento eterno. 
Sem futuro nem retorno ao passado, 
região em que essa poeira já foi pedra, 
como as que fincam-se entre os lírios. 
Meu desejo é então ser poeira, revirada pelo vento. 



Ao deus do vento


Ainda não entendo o dialeto do vento. 
O Minuano sussurrando ao ouvido 
das coxilhas palavras que só o espírito do tempo não esqueceu. 
O Alísio declamando aos coqueiros poemas da epopéia que se foi.
 Vento que acalma a pele áspera das montanhas. 
Arrasta as dunas através do deserto. 
Enche as naves das igrejas de todos os continentes. 
Vento que está sempre tocando, arranhando, refrescando,
 acariciando, eternamente passando. 



As estrelas de Sírius


Muito longe, muito longe de Sírios, um par de estrelas dançando, 
a vida, um livro escrito ao sabor do vento, me acomoda. 
Olho e no olho das pessoas está dita a única verdade: 
silêncio, melhor forma de descobrir segredos. 
Por isso, em nada cedo neste livro ao vento. 
Não sei o quanto escreve ou quanto sou escrito. 
A única certeza é o silêncio que cerca as estrelas de Sírius. 



Eterno retorno


A vida, sempre como o vento, 
capaz de mudar as paragens por 
que passa mas incapaz de voltar. 
E os dias se sucederão. E após a noite 
virá um dia até o fim dos tempos. 
Mas o que de semelhante 
há entre o 23 de novembro que é hoje 
e o vinte e três de novembro de um século futuro? 
Só a constatação de que a fuga é impossível, 
de que o destino sempre se fecha em si mesmo 
e de que o Nilo sempre inunda no retorno de Sírius. 



Sonhando


Ando por essas ruas, 
Perco-me nesta tarde, 
Saúdo a todos em meu caminho. 
Alguns vieram d’outros séculos. 
Olham para o alto dos edifícios 
Como se vislumbrassem pirâmides. 
Entram em automóveis como se fossem 
Barcos para atravessar a aurora. 
Sobre essa ponte, a vida se vai e eu fico, 
Sonhando com a areia dos dez desertos 
Que o tempo cultivou dentro de mim. 


Marcelo José Santos
Recife - PE (1974)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Benoni Araújo




port bou: a fronteira de um atrabiliário


trouxeram-te a melancolia por herança
ninguém a suportaria
destinatário desta solidão
amigos te escreveram & escreveram
as cartas nunca chegaram
refugiado numa rua de mão única
dela fizeste tua trincheira
uma esperança tão inútil
quanto as asas de um anjo
[filho predileto teu olhar teu horizonte
estilhaçados]
nem tudo melhora depois de uma guerra
amor morte selos postais: o que mais
caberia em tua maleta de passagens?
já não corres atrás de uma aura
mal atravessaste os pirineus
caíste na última fronteira da razão
nem te adiantaria colher flores
à margem de um rio
[resolveste te juntar a elas!]




na trilha de Kerouac


decerto que o coiote venceria
            o deserto
sugaria seus cactos
                                   & se lançaria colina abaixo
/já que você amarrou seus sapatos/
desatou-se de todos os destinos
nada deterá o caminho
muros & montanhas removem-se
                                                        ante teus passos
uma luz atravessa teus olhos
a busca nunca será vã
                                       & deixa rastros na estrada
tua herança vertiginosa
acenderá o uivo na madrugada
vejo a pérola sob teus pés
quero ar que movimenta
poeira em precipício
                                       por overdose de vida



silencifrado


aprendi a infernizar o mundo
assumi a nave da loucura
soerguida a bandeira da solidão
arrisco-me navegar à deriva
seguir a luz que me guiará
                                                   à destruição
me mexo do lado [de dentro]
me estremeço do lado de fora
dou diversos nomes ao fogo
[em seguida queimo-os!]
fui capaz de um hospício para abrigar
a poesia
                essa miséria louca
é perigoso acostumar-se a ela!
procuro ocupar um lugar já ocupado
um método para destruir deus
& aguentar as pontas/ segurar/ manter
Se preciso enterrar-me com a literatura


benoni araújo
Belém – PA (1968)

domingo, 15 de janeiro de 2012

Ivan Junqueira





Lição


À beira do claustro
o monge se inclina
e na pedra aprende
o que a pedra ensina:
que a vida é nada
com a morte por cima,
que o tempo apenas
este fim lhe adia
e que o ser carece
de não ser ainda,
pois à luz se esquiva
do que o purifica:
a doce pedra,
sem musgo ou limo,
o pátio só,
conquanto o sino,
o ermo das coisas
simples e humildes.





E se eu disser


E se eu disser que te amo - assim, de cara, 
sem mais delonga ou tímidos rodeios, 
sem nem saber se a confissão te enfara 
ou se te apraz o emprego de tais meios? 
E se eu disser que sonho com teus seios, 
teu ventre, tuas coxas, tua clara 
maneira de sorrir, os lábios cheios 
da luz que escorre de uma estrela rara? 
E se eu disser que à noite não consigo 
sequer adormecer porque me agarro 
à imagem que de ti em vão persigo? 
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro 
em tua ausência - essa lâmina exata 
que me penetra e fere e sangra e mata.





Quando solene e agudo


Quando solene e agudo eu te penetro, 
mais agudo que o gume de uma adaga, 
e à tua ilharga, que de suor se alaga, 
me enlaço como quem abraça um cetro, 
e lambo a tua espádua que naufraga 
sob o sêmen fugaz com que perpetro 
em ti o que não falo ou mal soletro 
tal o peso do pasmo que me esmaga, 
sou como um rei na cripta de uma vaga 
cuja espuma engalana cada imagem 
ou palavra que ruge na voragem 
das páginas sagradas desta saga. 
Quando me afundo em ti, útero adentro, 
como Deus, numa esfera, estou no centro.





Prólogo


Eu sou apenas um poeta
a quem Deus deu voz e verso.
Na infância, quando fui relva,
sentia os pés dos efebos
a calcar-me as frágeis vertebras
e colhia das donzelas
o frêmito que, venéreo,
era um augúrio da queda.

Depois, quando fui cipreste,
vi como o vento, em seus dédalos,
cingia-me a áspera testa
e tangia-me as ideias
que nos ramos, vãs quimeras,
pousavam como uma névoa,
úmidas ainda das trevas
e do abismo de que vieram.

Quando fui córrego, as pedras
me ensinaram que o critério
do que em tudo permanece,
nunca está nelas, inertes,
mas nas águas que se mexem
com vário e distinto aspecto,
de modo que não repetem
o que antes foi (e era breve).

Quando enfim galguei o vértice
de alguém que eu mesmo não era,
compreendi que esse processo
de sermos outros (e até
termos em nós outro sexo)
nada em si tinha de inédito:
já se lia no evangelho
de um deus ambíguo e pretérito.

E assim fui sendo esse leque
de coisas fluidas e inquietas,
jamais levianas, bem certo,
mas antes, em seu trajeto,
vertentes as mais diversas
de uma só e única célula:
a da matriz que não é
senão seu próprio reverso.

Espelho de meus espectros,
urna de engodo e miséria,
alma sôfrega e sem tréguas,
osso escasso no deserto
onde jejua um profeta,
solidão, infâmia e tédio
– eu sou apenas um poeta
a quem Deus deu voz e verso.


Ivan Junqueira
Rio de Janeiro – RJ (1934)

sábado, 24 de dezembro de 2011

Neuza Pinheiro




Medo
que um filho adoeça
que uma árvore não cresça
o céu desabe sobre a minha cabeça

Medo
que meu homem não volte
que algum deus se revolte
a lua se canse e desapareça

Medo
que o tempo não baste
que a vida me falte
eu
des
aconteça...



ver reversos

ver-me avesso a conchas
sem mastros
arcabouços

ver-me solto
aprisionando versos

versos
Cães Desiderycus
o Dom de ver
é velho

e num transe
ver-me verme
a grama cravejando orvalhos

ver
é tão vermelho...



aquele rio bem podia ser o meu passado

o meu passado bem podia dar naquela nuvem

aquela nuvem bem podia ser
a minha sombra

a minha sombra
bem podia dar
naquela árvore

aquela árvore
bem podia ser
a minha vida

a minha vida
bem podia dar
naquela fábula

aquela fábula
bem podia ser
a minha história

a minha história bem podia dar
naquela estrela

aquela estrela bem podia ser o meu destino...



cada peça
no corpo do poema
quando se arma o jogo
é alfabeto de chamas
palavra escrita em fogo

significar
é aniquilamento
eu acredito

atributo divino
onde Tudo começa
o Nada Infinito


Neuza Pinheiro
Arapongas – PR (1949)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Cleberton Santos

Foto: Ricardo Prado


Quixote


Poeta quixotesco, em papel imaginário,
faço meus poemas com tinta do amoroso orvalho
que recolho dos olhos da amada.

Amada de corpo d’água, cabelos de sal, olhos de estrela,
amada pintada pelas cores da alvorada,
amada recitada pelos mares e céus.

Fazer poesia é inventar amadas em castelos de vento.



Caruru dos Sete Poetas

No chão comemos o caruru dos 7 poetas
Entre versos e tachos e sinestesias e bacias

Os poetas revivem a festa das matas africanas
De seus lábios ecoam os ritmos ancestrais

Rodam no terreiro cavalos de poesia
A palavra sibila no atabaque do malungo

Todos cantam na força da magia
7 poetas comem caruru recitando euforias



Menestrel


Vi ontem na roda de poesia
Um poeta de voz alta
Quando seus poemas recitava
Não era alegre, não era triste, não era nada...

Era apenas um poeta que o mundo recriava
Em sonhos em ritmos em palavras...

Um poeta sem chapéu sem terno sem gravata
Recitando para as pedras os cânticos da alvorada...


Cleberton Santos
Propriá – SE (1979)