domingo, 15 de janeiro de 2012

Ivan Junqueira





Lição


À beira do claustro
o monge se inclina
e na pedra aprende
o que a pedra ensina:
que a vida é nada
com a morte por cima,
que o tempo apenas
este fim lhe adia
e que o ser carece
de não ser ainda,
pois à luz se esquiva
do que o purifica:
a doce pedra,
sem musgo ou limo,
o pátio só,
conquanto o sino,
o ermo das coisas
simples e humildes.





E se eu disser


E se eu disser que te amo - assim, de cara, 
sem mais delonga ou tímidos rodeios, 
sem nem saber se a confissão te enfara 
ou se te apraz o emprego de tais meios? 
E se eu disser que sonho com teus seios, 
teu ventre, tuas coxas, tua clara 
maneira de sorrir, os lábios cheios 
da luz que escorre de uma estrela rara? 
E se eu disser que à noite não consigo 
sequer adormecer porque me agarro 
à imagem que de ti em vão persigo? 
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro 
em tua ausência - essa lâmina exata 
que me penetra e fere e sangra e mata.





Quando solene e agudo


Quando solene e agudo eu te penetro, 
mais agudo que o gume de uma adaga, 
e à tua ilharga, que de suor se alaga, 
me enlaço como quem abraça um cetro, 
e lambo a tua espádua que naufraga 
sob o sêmen fugaz com que perpetro 
em ti o que não falo ou mal soletro 
tal o peso do pasmo que me esmaga, 
sou como um rei na cripta de uma vaga 
cuja espuma engalana cada imagem 
ou palavra que ruge na voragem 
das páginas sagradas desta saga. 
Quando me afundo em ti, útero adentro, 
como Deus, numa esfera, estou no centro.





Prólogo


Eu sou apenas um poeta
a quem Deus deu voz e verso.
Na infância, quando fui relva,
sentia os pés dos efebos
a calcar-me as frágeis vertebras
e colhia das donzelas
o frêmito que, venéreo,
era um augúrio da queda.

Depois, quando fui cipreste,
vi como o vento, em seus dédalos,
cingia-me a áspera testa
e tangia-me as ideias
que nos ramos, vãs quimeras,
pousavam como uma névoa,
úmidas ainda das trevas
e do abismo de que vieram.

Quando fui córrego, as pedras
me ensinaram que o critério
do que em tudo permanece,
nunca está nelas, inertes,
mas nas águas que se mexem
com vário e distinto aspecto,
de modo que não repetem
o que antes foi (e era breve).

Quando enfim galguei o vértice
de alguém que eu mesmo não era,
compreendi que esse processo
de sermos outros (e até
termos em nós outro sexo)
nada em si tinha de inédito:
já se lia no evangelho
de um deus ambíguo e pretérito.

E assim fui sendo esse leque
de coisas fluidas e inquietas,
jamais levianas, bem certo,
mas antes, em seu trajeto,
vertentes as mais diversas
de uma só e única célula:
a da matriz que não é
senão seu próprio reverso.

Espelho de meus espectros,
urna de engodo e miséria,
alma sôfrega e sem tréguas,
osso escasso no deserto
onde jejua um profeta,
solidão, infâmia e tédio
– eu sou apenas um poeta
a quem Deus deu voz e verso.


Ivan Junqueira
Rio de Janeiro – RJ (1934)

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