segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Dora Ferreira da Silva




Koré

I

Não vi teu rosto.
Mas teu poder cada manhã nascia
para morrer nos carros de ouro do crepúsculo.
No espaço
a lua adormecia
sobre o sono dos mortos
e entre todos era belo teu rosto
claro mas indefinível
secreto.

Meu coração ardia
quando entre as sombras erravas
pelos caminhos frios.
Onde a marca de teus pés
tão finos
na extensão do mundo?

Teço violetas pequenas
busco o narciso selvagem
nas planícies distantes.
Meu Senhor virá sem que o vejam
meus olhos fartos do dia.
À noite
entre estrelas acesas
verei seus olhos sombrios.


II

Teu passo desliza para a esquerda
desenhando o pálido caminho.
Flor enrodilhada
rumo ao sol sombrio
que amor é o teu, feito de repulsa e ânsia,
traçando as pétalas da misteriosa dança?

Andarilha do limiar
ao centro te aventuras
despojada das vestes da alegria
no ouvido inscrito o canto sibilante
do vento
pela ramaria.

Do Hades enamorada,
trânsfuga do dia, danças
a dança do teu amor ausente,
deslizando na rosa em espiral
nascida de teu passo, pródiga semente.


III

Violetas e romãs
tuas flores, teus frutos.
Triste e sorridente nas cirandas da infância
o olhar mais fundo que as cisternas
negras tranças.
Entre as companheiras, esquiva e pensativa,
O regaço cheio de ramos,
descuidavas.

Abriu-se a terra, e ele surgiu
de raízes
nunca suspeitadas.
Relinchavam os cavalos, impacientes, sob o jugo.
E então colheu-te, sem remorsos,
como, por jogo,
violetas recolhias.

Mordeste a romã
e ficaste
Rainha da mansão sombria
viva entre os mortos
na túnica branca de menina.

eas voltas com o sol e a primavera
escolhida entre as flores.
Noturna no dia
e sob a lua
brilho de fonte amanhecida.



A Sibila



Nas praças, nos templos e olivais
um grito de louvor à Terra, dançai!

Vim sem o esplendor da aurora, mendiga,
não como as musas de outrora, dadivosas Diotimas,
vim mendigar o que há muito vos ofertei, Poetas:
sopro-vos à garganta dilatada, vossos olhos ceguei
para que o fundo olhar se liberte. Sibila em agonia,
há tanto silenciada, falarei por vossas bocas,
em vossos versos arquejará minha voz embriagada, rouca -
sustos e soluços, gritos, silvos, neblinas de esgares,
mares de canto e pranto. No tempo além do tempo
meus lábios murmuram por ti e perto dos templos derruidos,
a respiração do velho Mar, seus haustos e gemidos.

Mostra-me o silêncio o lacre escarlate, verbo indigente
dos mitos que sempre me uniram às setas de Apolo.
Há tanto minha palavra foi calada, os deuses recuavam...
Mas os poetas mantiveram-me viva. O mais ínfimo
deu-me de beber e em sua hídria refresquei meu rosto.
Sensíveis a meu sopro, os maiores coroaram-me de folhas verdes.
O nascimento do Poema é o silvo que Apolo harmoniza e Orfeu faz cantar.
Rompendo as cisternas escuras eu vim, raiz coleante
por entre as pedras e a secura. Dilacerada, arquejante,
acolhe-me Apolo em seus braços de névoa.
Gemidos rasgam mil caminhos na gruta: Ai, ai, oh...
A Sibila arrasta-se no pó, soluça, seus lábios deliram,
traça no ar os gestos incertos dos agonizantes, colhe flores
na neblina. Ai, ai, oh... Foram-se os deuses da Grécia,
só espelhos reflectem espelhos, o eterno assim se dá e esconde.

Onde Afrodite, a de róseos tornozelos, ungida de óleo incorruptível,
com seus perfumes, colares e pulseiras cintilantes?
Onde Ártemis, a de doçura selvagem? Foram-se as ninfas
e hamadríades! Nunca mais a vida estuante dos bosques,
suas flores e clareiras, onde Zeus e Hera adormeciam ao calor do dia.

Ai, ai, neblina, o que enlaçarão agora nossos braços?
Não mais que névoa e vento. Apolo, assim te afastas, e me deixas presa
à teia indecifrável destes sons selvagens? Aaa Oooo...
Em teu ombro dourado me apoiava, inventando poemas que ditavas
a meu secreto entendimento. Infeliz de mim! Agora
só posso tocar névoa e memória. Dissiparam-se Mundo e Palavra.

A Sibila chorou.

Nesse momento as coisas cessam, silenciosas,
atemorizadas. Os ventos param de soprar,
nas árvores as folhas não se movem.
Os rios adormecem e o gigantesco Mar
é liso e sem ondas. Paira sobre tudo um
SANTO SACRO SILÊNCIO

Perde-se na neblina a medida do Tempo,
tudo se abisma no silêncio, à espera
do alto Deus, meta dos séculos.

A Sibila abre os grandes olhos
e vê o Deus que nasce.

A Mãe, junto ao Menino, parece uma vinha
e enquanto a Lua surge, clara, ela adora
o Filho em seus braços. De ouro vivo é a Criança
e em resplendores toda a gruta se ilumina.
Luz nascida como o orvalho descendo do Céu à Terra
e em torno, suavíssimo aroma.
Anjos perpassam, alígeras borboletas
e cantam: Amém.

A Sibila sorri.

Um cântico novo brota em seus lábios, mas não é seu,
o infinito o modulou:

O aroma de teus perfumes é delicado
e teu nome, óleo que se derrama.
Serás novo júbilo e alegria...
Não repares em minha tez morena, que o sol queimou.
Irados, meus irmãos fizeram-me guardar as vinhas,
eu, esquecida da Vinha!

Ouço a voz do meu Amado batendo à porta
Lentos são meus pés e ao abrir a porta
o Amado já se foi. Corre minha alma
e o busca por toda a parte. Não respondes, Amor,
ao meu chamado?

Eu vos suplico, filhas de Jerusalém,
se o encontrardes
dizei-lhe que estou doente de amor.

O que tem ele - elas perguntam -
o que tem o teu Amado mais do que os outros
para que assim o busques, quase morta?

Meu Amado é róseo e brilhante,
meu Amado vermelho. Sua cabeça é de ouro puro,
seus cachos, negro-azulados.
Seus olhos são duas rolas
perto de um lento riacho.
Destila mirra
o lírio de seus lábios.
Sei que habita um jardim,
companheiros ouvem sua voz...
Oh, faze que eu também te escute!

Quem é essa que vem do deserto
como um cântaro apoiado a um peito amoroso?
Ele é um selo sobre seu coração,
sobre seu braço moreno,
pois o Amor é forte como a Morte,
seus centelhas são de fogo:
uma chama divina!

Dissipa-se na névoa um rosto efêmero,
mas a face do Amado permanece.


Dora Ferreira da Silva
Conchas - SP

(01/07/1918 - 06/04/2006)

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