domingo, 23 de outubro de 2011

Lêdo Ivo




O jumento


No alto da crestada ribanceira
pasta o jumento.  Seus grandes dentes amarelos
trituram o capim seco que restou
de tanta primavera.
A terra é escura.  No céu inteiramente azul
o sol lança fulgores que aquecem
tomates, alcachofras, berinjelas.
O jumento contempla o dia trêmulo
de tanta claridade
e emite um relincho, seu tributo
à beleza do universo.



Os morcegos 


Os morcegos se escondem entre as cornijas 
da alfândega. Mas onde se escondem os homens, 
que contudo voam a vida inteiro no escuro, 
chocando-se contra as paredes brancas do amor?

A casa de nosso pai era cheia de morcegos 
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros 
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
"Estes filhos chupam o nosso sangue", suspirava meu pai.

Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero 
que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos 
(meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige 
o suor do semelhante mesmo na escuridão?

No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz
do farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.
Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda
o dia ofendido.

Ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas. 
Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.
E entre os nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.




O voo dos pássaros


Os áridos pássaros que mudam as estações
não vieram nunca, embora eu os esperasse.
Acaso falam os homens do que viram?
Silenciosos são os lábios dos homens.
Grito ou palavra de amor não comovem
as pedras empedernidas pelo tempo.

Eram secos pássaros.
E o céu, que é plumagem, crepita.
Nem nos que voam nem nos que permanecem.
Não me demorei sobre nenhum pássaro.
Voando, eram a velha canção da infância morta
para mim, que sempre vi o que não existe
e eternamente verei o que jamais existirá.

Em voo, como os anos, a vida, o tempo...

Nada imaginei que pudesse ser admitido
pelos que não entendem uma teoria de pássaros.



Lêdo Ivo
Maceió – AL (1924)

Seleção: Sergio Alves Peixoto

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