quarta-feira, 6 de abril de 2011

Raimundo Gadelha




Resíduos residenciais


Quanto sentimento não reside nessa dúvida:
afinal, creme ou amarela,
qual a cor exata dessa geladeira?
Acaso saberia ainda a data de sua compra?
Não, não me lembro mais dela
E no carnê de prestação, feito há tanto tempo
tanto tempo
tanto tempo
tanta dor… estaria escrito o quê, geladeira ou refrigerador?

A verdade é que ela se tornou sentinela do meu espaço
Espaço limitado e habitual
Residência
Resistência nociva à liberdade maior,
aquela liberdade verdadeira e plena
que reside na inexistência de um espaço formal
Vasto e ilimitado espaço
onde possa ser tudo o que penso e não o que faço
Ser sendo, mesmo diminuto, conteúdo essencial

Ah, geladeira ou refrigerador!…
tanto tempo
tanto tempo
tanto tempo aqui fora se passou
E no entanto, aí estás, retangular e imóvel
Móvel de contemplação estática
engolindo líquidos e sólidos ao primeiro sinal de comando

Ah, geladeira… não pelo frio que produzes,
mas tristeza é o que teu aspecto traduz

Abre-se a porta, acende-se a luz
Fecha-se a porta, apaga-se a luz
Apesar de toda a ferrugem, tudo funcionando…
E o tempo passando, passando…
E quantas mãos já não passaram por ti?
E quantas outras ainda não passarão?
Mas, aí estás imóvel e, ainda assim,
fazendo meu pensamento varrer o passado
em busca de caminhos antigos

Visualizando teu interior chego a pensar
se também não precisas de calor…
Mas apenas me vem a mesma sensação
de escuro, frio e solidão
E isto é pouco, muito pouco
para quem, por algum tempo, ocupou um espaço
tanto tempo
tanto tempo
tanto tempo nesse espaço…
Gosto de ti, geladeira!
E de certa forma, vejo pedaços de mim impregnados em ti
Pensei e fiz tantas coisas durante tanto tempo
tanto tempo
tanto tempo
tanto tempo diante de ti…
Nem sei se devo te pintar…
Temo a artificialidade e a descaracterização
Geladeira, quero-te assim mesmo,
morrendo aos poucos sob a ação do tempo
e aos poucos conhecendo ainda mais de mim
Só tenho uma queixa, um lamento enfim:
por que não te confiei a tarefa
de conservar meus melhores momentos?

Sabe, geladeira?
Está frio aqui fora.


Raimundo Gadelha
Patos - PB (1953)

2 comentários:

  1. Olá,
    há algum tempo uma amiga me recomendou "Um estreito chamado horizonte". Hoje recebi o livro, edição japonesa, comprada num sebo. Uma beleza!!!!!!!!e ainda veio com o amarelo das páginas já percorridas. Maravilha!!!! Wabi sabi!!!
    Ando cometendo um projeto com fotos wabi sabi. Voce tem algum projeto para vir a Salvador?
    Grande abraço, Chandani

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  2. Um dos poemas mais introspectivos e sensíveis sobre um tema tão trivial. Gadelha é um grande poeta! Merece um maior reconhecimento enquanto tal.

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