quarta-feira, 25 de maio de 2011

Olga Savary




Nemanungára*


Coração, animal selvagem,
não foste a arma do crime
e a bem dizer nem houve vítimas
mas se vítimas houvesse é como
se foras a arma do crime.

Paixão, sofro de um mal
que não ouso dizer o nome.

Tão pouco amor para tanta morte,
tão pouco amor para tanta água,
tão pouco amor para tanta sede,
tão pouco amor para tanta fome
– e não poder matá-las na pele do meu homem.


*Do tupi: nada de novo.



Ciquieçáua*


Que não se pergunte nada.
Amor tem é de ser tomado,
esgotada a boca no beijo
até à exaustão, na boca
palavras salsugem-mel
obscenas e violentas.
Que se acariciem e que se batam
os que se matam de vida
morrendo da mesma morte
(pequena morte, como é chamada).
Tenho mais o que fazer, diria.
Mas dito isto eu não pensava
que amor tivesse atingido tanto:

enterrem meu coração na curva do cio.


*Do tupi: vida.



Camánau


No princípio era o abismo
que sou eu e não sabia.

Diurno, não vês a noite
que me ronda e cobre
e só tu vês a manhã,
se é possível: apaixonado e impessoal,
com o rosto belo e gasto
de tanta paixão e desdém.
E eu não te possuo
porque das manhãs me evado
quando nelas deveria ter meu porto
divino, como convém a uma rainha,
tua amazônida rainha.
Nenhuma droga me embriaga
não sendo a que vem dos deuses
pela natureza que te imita
e por tua língua em fúria
porque pertencemos à raça
daqueles que mergulham no mar
como escapando a um labirinto.


*Do tupi: caça.


Olga Savary
Belém – PA (1933)

2 comentários:

  1. Olga querida! Essa sinestesia da nossa identidade índia, que você tão bem canta, é imprescindível à vasta "ciquieçáua" que o amor solicita. No mais "Que se acariciem e que se batam
    os que se matam de vida
    morrendo da mesma morte(...)

    enterrem meu coração na curva do cio.
    Bjcs, Léa Madureira Lima

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  2. Querida Olga, minha mestra, esses poemas sensuais, intertextuais, hino de amor à cultura indígena são lindos!
    Grande abraço da amiga
    Celi Luz

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