domingo, 21 de agosto de 2011

Igor Fagundes




a pergunta


o que esperar da vida: a espera pela célula
em cujo núcleo um mapa estampe a travessia
como se os pés apenas fossem a genética
e não houvesse o passo atento ao imprevisto

o que esperar da vida: uma época ou história
medida pela causa e o efeito dos destinos
como se os dias fossem puro ardor da lógica
enquanto as noites desafiam o esclarecido

o que esperar da vida: uma ética vendida
às equações do bolso, a compra de terrenos
em bocas, beijos, glúteos, gulas por vagina
e coca-cola, e cocaína se houver tempo

o que esperar da vida: uma hérnia, uma metástase
a histérica traída, a volta cancerígena
do cônjuge à morada, à cama que é só lágrima
– virótico anticorpo que é de si o antígeno

o que esperar da vida: um tédio com vacina
remédio para o mal e para o bem, assim
na cura das fraturas, das dicotomias,
se em cada não há uma fartura de algum sim

o que esperar da vida: o sim e seu avesso
um erro como acerto, o incerto da procura,
o livre-arbítrio do que enruga nos espelhos
e o precipício dos sorrisos em loucura

o que esperar da vida: a vida já tão dita
que esvai sem se dizer, sem ser sua fé divina
acesa nesta rima em nós tão cínica
o que esperar da morte: a sorte decisiva



ponto zero


antes da reta, da seta, de um lastro
de vida, o fiapo de um ponto, a fagulha
de um passo, a febre sem dono que espera
do vácuo, o sopro de um corpo em costura

menos que fio, fracasso da fala
quando, na trama, impossível dizer
pelas agulhas do verbo os espaços
abertos na hora em que puxam, pespontam
a linha de que o silêncio é o empuxo

menos que o zero: o sem-número, a núpcias
de deus com si mesmo, o nada com coisa
nenhuma, ausência fecunda, a que (a)funda
o canto poético em campo magnético
em magma quântico, em verso pré-ôntico
disperso em águas sem frinchas, sem fundo

no fluxo máximo, o pleno repouso
– dança que gesta esse imóvel que a gera
e a esgarça rumo ao que houver de infinito
em seu limite, no ventre dos ocos
preenchidos, pais do que segue indistinto:
navio gêmeo do próprio vazio
que, do horizonte, o especula em destino



resenha

Le mie poesie non cambieranno Il mondo.
Patrizia Cavalli


me cansa quem me acusa de erudito
apenas porque o verso é bom, não minto
enquanto pedem viço pós-moderno
assumo que meu texto eu não defeco
agora pronto: causa impacto o verbo
e de repente alcanço mais prestígio

me cansa quem abusa das firulas
no jogo de palavras quase extintas
parece que o prazer se faz na busca
ao dicionário, na edição antiga
ou num vocábulo que nada diga
senão o vazio de quem só rebusca

me cansa quem me exige estar despido
tal qual um réu à frente de um juiz
se sou o que não sou e até o que finjo
importa a quem (?) se morro ou se feliz
apago o que rascunho neste giz
ou me abro sob um punho comedido

me cansa quem me cobra engajamento
no mundo desigual, como se atento
ao meu redor, não fosse um poeta lânguido
ensimesmado no ópio mais romântico
onde me engajo apenas no que invento
e não me engasgo se as palavras canto

me cansa quem se apega ao que não anda:
como a utopia, desde sempre, manca
e a cada vez que um atolado empaca-me
com gritos contra a fé decassilábica
me cansa toda inveja, mesmo as brancas
(e aqui não há racismo, isso me cansa)


Igor Fagundes
Rio de Janeiro – RJ (1981)

Um comentário:

  1. Adorei esse poema "Resenha", um desabafo do poeta contra aqueles que o criticam e sobre ele, projetam suas expectativas pelas quais ele não se sente responsável e nem liga para elas..

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